domingo, 11 de novembro de 2012

O VELHO LOBO DA VÁRZEA - Francisco Brenand.


MEMÓRIA. Artista plástico de talento inigualável, o ceramista, pintor, desenhista e escultor pernambucano Francisco Brennand construiu um mundo particular numa antiga fábrica de tijolos
O VELHO LOBO DA VÁRZEA
Foto: FLORA PIMENTEL/DIVULGAÇÃO


Recife, PE – Francisco Brennand passa todos os seus dias na antiga fábrica de cerâmica herdada de seu pai, no bairro da Várzea do Capibaribe, no Recife. O local foi transformado por ele, desde 1971, em sua oficina; mais do que isso, em um templo para sua arte. Esculturas de abutres, seus Pássaros Rocca, formam uma grande fileira de sentinelas no alto da cidadela do artista – abaixo deles, mulheres, homens e animais feitos em cerâmica, sempre a partir de uma raiz fálica, sexualizada e mitológica, povoam toda a área da Oficina Brennand. Há ainda ovos esculpidos pelo chão; um galpão chamado Accademia, dedicado às pinturas; excertos literários de Borges, Carlo Levi e de Eclesiastes transcritos em painéis de cerâmica; imagens de santos e símbolos de Oxossi; fornos, fontes e um lago; cisnes negros selvagens perambulando por jardins projetados pelo paisagista Burle Marx. “Isso parece o Egito”, disse um taxista a Brennand, anos atrás. “Senti que ele estava à procura de um equivalente da palavra mistério”, conta o artista, que naquela época ainda estava no meio do processo de transformar as ruínas da Cerâmica São João em seu “projeto sem volta”, sua obra de vida.

Um dos principais artistas brasileiros, com carreira iniciada na década de 1940, Brennand, aos 85 anos, é um homem recluso, de barba longa e branca. “Envelheci aqui. Tinha um quarto em cima, em que dormi durante muito tempo, e um dia eu desci e já era um velho. Mas a minha conversa não é a conversa de um solitário. Um solitário, em geral, se desabitua a falar, e eu gosto de falar, um amigo dizia que é um mal incurável”, brinca Brennand, que recebeu a reportagem em seu ateliê na semana passada, para uma longa conversa de quatro horas.



Figura complexa, criador ultraculto e polêmico, católico apostólico romano, cinéfilo que já escreveu sobre Antonioni e outros cineastas, construtor de um museu a céu aberto que se tornou um dos espaços mais particulares do país, o pintor e escultor é o tema do documentário Francisco Brennand, destaque da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que será aberta nesta quinta-feira (18) na capital paulista. O filme, dirigido pela sobrinha-neta do artista, Mariana Brennand Fortes, estreia no próximo sábado, na Cinemateca Brasileira.

Brennand abriu seus diários, escritos desde 1949, para a sobrinha-cineasta e possibilitou, assim, que Mariana construísse um documentário com ares híbridos, até ficcionais, como a narração de um sonho cinematográfico. Por meio de belas imagens (a fotografia é assinada por Walter Carvalho) e pela voz do artista – por suas falas ou pela criação de uma narrativa a partir de sua escrita íntima –, abre-se uma janela para que o público possa adentrar nos mistérios e trabalhos do universo de Brennand. “Quando comecei a reforma disso (da fábrica Cerâmica São João, então em ruínas), minha única preocupação era não deixar o mistério sair daqui”, observa ele.

A Oficina Brennand, com seu imponente Grande Pátio do Templo ao Ovo Primordial, criado entre 1979 e 1989 na entrada da fábrica, recebeu, somente em 2012, cerca de 18 mil visitantes (o ingresso custa R$ 10). O museu é como um refúgio aberto, como mostra a passagem inicial do filme. Nela, Brennand vai ao Marco Zero do Recife, no cais do porto, onde estão abrigadas algumas de suas esculturas, algumas monumentais – mas deixa suas obras entre os estrondos do mar para voltar correndo à sua fábrica. Uma estrada construída depois da cheia do rio em 1975, entre uma mata plantada numa terra de canaviais, o leva – e nos leva – como um “túnel verde” e com “auréola de magia” àquele lugar da arte do pintor e escultor. “Mariana tirou partido disso. Quando saio do Marco Zero, me refugio aqui”.